Pesquisar este blog

Seguidores

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Trajetos do Espiritismo no Brasil 4º PARTE



O NAU, Núcleo de Antropologia Urbana, formado em 1988 no Departamento de Antropologia da USP, é um grupo de pesquisa e discussões teórico-metodológicas sobre questões relativas às sociedades urbano-industriais contemporâneas.

Jacqueline Stoll, Sandra. Religião, ciência ou auto-ajuda? trajetos do Espiritismo no Brasil
Disponível via WWW no URL http://www.n-a-u.org/Stoll1.html
CAPTURADO em 19 / 01 / 10

Sandra Jacqueline Stoll é professora da. Universidade Federal do. Paraná
Departamento de Antropologia ­ UFPR

A conversão

Transição de natureza marcadamente simbólica, a conversão de Chico Xavier ao Espiritismo ocorreu a partir da experiência de cura de uma sua irmã, realizada por um casal espírita, depois de sucessivos tratamentos médicos malsucedidos visando o controle de seus "acessos de loucura". Então com 17 anos, Chico Xavier participou das orações e passes, sendo em seguida introduzido à obra de Allan Kardec. A narrativa desse fato ao pároco e a decisão de seguir a nova doutrina marcaram o seu desligamento oficial do Catolicismo. Antes, porém, Chico Xavier buscou a bênção do padre:

Eu respondi [...] que apesar de respeitá-lo muito, ia estudar o Espiritismo e dedicar-me à mediunidade. Ele permaneceu calado [...]. Pedi a ele que me estendesse a mão [...]. Depois de beijá-la, pedi que me abençoasse. Ele, então, me disse: "Seja feliz, meu filho. Eu rogarei à nossa Mãe Santíssima para que te abençoe e proteja [...]". Levantei-me e saí, sabendo que havia tomado a decisão de praticar a mediunidade; quando cheguei à porta, voltei-me para vê-lo ainda uma vez, notei que ele [...] me acompanhava com o olhar e sorria. (Barbosa 1992 [1967]: 29)

A mudança de tutoria constitui, nesse caso, uma das marcas fundamentais do trânsito religioso. Como demonstram os dados acima, até então a tutela espiritual de Chico Xavier vinha sendo exercida pela mãe, "em espírito", e pelo padre. Essa dualidade foi eliminada com a conversão religiosa, estabelecendo-se a partir daí a sujeição exclusiva à tutela dos espíritos. Ritualmente a mudança foi marcada pela substituição do vínculo de consangüinidade (mãe/filho) pelo vínculo de parentesco simbólico, selado na relação de apadrinhamento estabelecida entre médium e guia espiritual. Este último, no entanto, não se identificou de imediato. Segundo relato de Chico Xavier, Emmanuel se manteve incógnito por quatro anos (de 1927 a 1931), período considerado de treinamento de sua mediunidade, em especial da prática da psicografia.

Fase liminar, característica dos processos iniciáticos, essa etapa foi marcada pela produção anônima, envolvendo dupla iniciação: além do desenvolvimento da escrita mediúnica, as mensagens psicografadas promoveram a familiarização de Chico Xavier com um "discurso de virtudes", que incisivamente remetia à questão da obediência, da paciência e da humildade. Esses temas, que até então haviam sido objeto de orientação materna como solução para os conflitos familiares, passaram a partir de então a promover a formatação de sua personalidade pública.

Um "contrato de trabalho", visando a produção de livros mediúnicos selou, a partir de 1931, a relação entre médium e guia espiritual. Chico Xavier conta que se encontrava num final de tarde em orações à beira de um açude, localizado à saída da cidade, quando avistou um espírito "envergando uma túnica semelhante à dos sacerdotes" que a ele se apresentou: "Está mesmo disposto a trabalhar na mediunidade?", perguntou. "O senhor acha que estou em condições de aceitar o compromisso?", retrucou o médium. O espírito respondeu: "Perfeitamente, desde que respeite três pontos básicos". Chico perguntou: "Qual o primeiro ponto?" Resposta: "Disciplina". "E o segundo?" "Disciplina". "O terceiro?" "Disciplina" (Gama 1995 [1955]: 64).

Aceito os termos do contrato, desenvolveu-se entre ambos uma relação de maior abrangência: duradoura, cotidiana, sobretudo, disciplinadora. As tensões que emergiam de início em função da divergência entre pretensões, projetos e/ou decisões pessoais do médium e a vontade dos espíritos evidenciam como se deu o processo de seu treinamento disciplinar, abrangendo as mais variadas dimensões de sua vida cotidiana. Segundo seu próprio relato, o seu tempo passou a ser dividido entre o trabalho remunerado e as atividades noturnas e de fim de semana no centro. Restavam-lhe poucos momentos de lazer. Conversas numa roda de amigos eram raras.

Chico Xavier e Itamar Franco Chico Xavier afirma que a postura de Emmanuel era implacável em todas as situações. Inclusive diante das dificuldades econômicas por ele enfrentadas. Ele conta que em 1939 um grupo de cientistas russos lhe fez uma oferta: convidaram-no a passar seis meses em Moscou, com o fim de realizar testes sobre sua mediunidade. A oferta parecia tentadora: "o dinheiro era suficiente para construir cinqüenta casas populares. Uma fortuna para quem estava às voltas com a primeira de oito prestações de um novo chapéu" (Souto Maior, 1995: 56). Mas Emmanuel foi logo pondo fim às suas pretensões: "Se quiser, pode ir ­ disse ele ­ eu fico". Igualmente rigorosa foi sua conduta em relação aos problemas de saúde do médium.

Chico Xavier conta que, uma noite, estava psicografando quando "sentiu o olho esquerdo invadido por fragmentos de areia" (: 29). Esfregou-o "mas a coceira continuou. Tentou fixar a lâmpada com a pupila incomodada, mas em vez da luz acesa viu um foco difuso. Mal conseguia enxergar os versos récem-escritos". Assustado recorreu, como sempre fazia, à oração. Apareceu-lhe o "dr. Bezerra de Menezes20", que pouco depois informou: "Sua vista amoleceu por razões que não podemos saber agora. Prepare-se para ir a tratamento em Belo Horizonte, para que sua família não diga que você ficou sem se tratar por nossa causa" (: 29). Dois dias depois, soube do diagnóstico oficial: "Isso é um tipo de catarata [...] inoperável" (idem). Chico Xavier tinha então apenas 21 anos. Ele decidiu consultar Emmanuel a respeito. "Tenha serenidade, [...] você está sob cuidado dos benfeitores espirituais e sob a assistência de médicos atenciosos e amigos" (Barbosa, 1992 [1967]: 85), disse-lhe o espírito. "Quer dizer que preciso tratar-me?" (idem), perguntou Chico desapontado, acrescentando em seguida: "O senhor quer dizer que embora eu seja médium [...] não posso esperar a intervenção do Plano Espiritual em meu benefício para curar-me?" (idem). Emmanuel retrucou:

Por que você receberia privilégios por ser médium? [...] a condição de médium não exonera você da necessidade de lutar e sofrer, em seu próprio benefício, como acontece às outras criaturas que estão no Plano Físico. (Idem)
Chico Xavier não se resignou de imediato. Perguntou como poderia desenvolver a tarefa de escrita dos livros espíritas, que apenas se iniciava, se a deficiência visual de que era portador dificultava-lhe o trabalho. Disse-lhe o guia: "Confie no Senhor, pois sua doença é arrimo que ele enviou em seu auxílio" (: 86). Chico alegrou-se imediatamente: "Então Jesus vai curar-me?" (idem). Ele mesmo prossegue o relato:

Emmanuel me fitou [...] e mandou que eu abrisse O evangelho segundo o Espiritismo, no capítulo VI [...]. Então comecei a ler em voz alta [...]. Quando atingi a palavra "aliviarei", nosso Amigo Espiritual sustou-me a leitura e disse: "Compreendeu bem? Jesus não promete curar-nos, isto é, retirar-nos [...] das obrigações que nos cabe cumprir perante as leis de Deus mas promete aliviar-nos e auxiliar-nos. (Idem) Sem outra alternativa, Chico Xavier afinal deixou-se convencer: "Resignei-me", disse ele (idem).

Anos mais tarde, quando perguntado sobre a doença nos olhos, dizia: "Todo médium tem seus testes" (: 47). Ou então afirmava: "Eu não poderia escapar. Ainda hoje devo sofrer para aprender" (idem). Houve também ocasiões em que fez suas as palavras de Emmanuel, como, por exemplo, nessa entrevista: "Decerto o Mundo Espiritual permite que eu passe por [...] provações para mostrar-me que receber livros [...] não me cria privilégio algum" (: 32).

Revendo mais tarde sua trajetória, ele assim a resumiu: "Emmanuel tenta adaptar-me para a colaboração com ele, desde 1931 até agora, assim como um viajante [que] procura domar um animal freado e irrequieto, a fim de realizar uma longa excursão" (: 66; destaque meu).

O modo como Chico Xavier retrata o processo de sua conversão e assujeitamento à vontade dos espíritos permite observar que a produção da liminaridade, característica dessa fase, expressa-se tanto por gestos de ruptura, como de continuidade em relação à filiação religiosa de origem. O modo de construção da relação entre médium e guia espiritual é exemplar especialmente com relação a esse último aspecto: de um lado, essa relação ritual se inscreve nos termos do parentesco simbólico, traduzindo-se o apadrinhamento numa relação de proteção de tipo filial, o que remete ao modelo santorial próprio do Catolicismo popular; de outro, o aporte institucional, eclesiástico católico, também aparece como fundamento da autoridade do espírito-guia. Além do preceito institucional da obediência, que inscreve essa relação, a própria imagem do guia, divulgada pelos espíritas, remete ao modelo institucional católico. Basta observar as fotos reproduzidas em livros espíritas a partir da narrativa de Chico Xavier: nestas Emmanuel aparece sempre com vestes sacerdortais, semelhantes às de um padre jesuíta21. Os trajes que ele ostenta (uma espécie de batina preta) assim como a rígida disciplina de trabalho e de vida que impôs ao médium são típicas desse aporte institucional.

Donde se pode afirmar que nessa primeira etapa do percurso iniciático de Chico Xavier a experiência da conversão é construída a partir de um duplo sincretismo com a tradição católica. Na etapa seguinte, porém, prevalece a interlocução com o modelo institucional, como se verá a seguir.

CONTINUA. . . .

TAGS:”Keyword” A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO,A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO,A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO, A HISTÓRIA DO ESPIRITISMO

0 comentários:

A História do Café da Manhã